Eu sou atriz, bailarina, diretora, criadora e professora de Yoga Intuitiva. Minha história com o corpo e a arte começa com o balé clássico. Com três anos de idade, porque semanas antes de me matricular disse pra minha mãe, do nada: “- Eu sou um bailarina russa”.
Ao ouvir essa afirmação de uma menina de 3 anos, minha mãe imediatamente me inscreveu no balé da tia Euríka.
Tenho fotos com o pescoço duro, a boca travada, o cabelo bem esticado, o bumbum preso e as pernas duras onde é fácil perceber que meu nível de exigência e as tensões que busco desfazer hoje já estavam sendo condicionadas e treinadas. O balé foi bom pra mim no aspecto da descoberta da força do meu corpo, da leveza e graciosidade. Agradeço. Mas foi super duro tentar me encaixar naquele padrão de magreza, seguir o modelo de beleza das ninfas e competir com as outras meninas. Parei com 11 anos e foi um alívio.
Paralelo ao balé, eu cresci numa casa com quintal em uma cidade pequena e minhas mais remotas lembranças incluem subir em árvores, virar estrelas e me equilibrar sobre as mãos em uma postura invertida, brincar de escravos de Jó com pedrinhas, jogar Queimado e Bandeirinha e tocar a campainha das casas para depois sair correndo. Desse jeito, meus joelhos foram esfolados nem sei quantas vezes, descobri minha sexualidade em meio às brincadeiras de Salada Mista e os esconderijos do quintal.
Com doze anos eu comecei a me interessar pelos livros da minha mãe na estante. Minha mãe é médium de psicofonia, psicografia e clarividência. Uma mulher forte que, junto à um grupo de trabalho, construiu um Instituto de Pesquisas Psicobiofísicas – a Pousada de Francisco. Eu cresci em meio à orientações espirituais e histórias da quarta, quinta, sexta e sétima dimensão. Tudo sempre me pareceu absolutamente natural.
Então, com doze anos passei a mexer na estante de livros da minha mãe e fui apresentada ao longo da minha adolescência à Alexander Lowen, Jung, Reich, Fritjof Capra, Barbra Ann Brennan, Thich Nah Hann, entre outras grandes figuras que elaboraram a relação corpo, mente, alma e universo. O espaço do pensar a si mesmo como parte do todo e de realizar o ser estava ali disposto para mim, mas eu não atentava para a grandiosidade que estava entrando em contato.
Um mês depois de fazer dezessete anos vim morar no Rio de Janeiro. Eu ansiava ardentemente por essa mudança, o momento mágico em que fui estudar Teatro na CAL. Todo um mundo se abria e eu me deslumbrei com todas as possibilidades de existência à minha frente. Trabalhei bastante como atriz e no início isso incluía apresentações de Poesia – naquela época pipocavam eventos poéticos por toda a cidade – e eu fui apresentada à Adélia Prado, Affonso Romano de Sant`anna, Fernando Pessoa, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade…
Eu amava a ideia de ser atriz, mas meu ego se colocava sempre à frente da minha essência e eu não sabia por quê, mas me sentia de alguma forma deslocada, julgada e sempre tentando seguir um padrão global de atriz. Então, com 20 anos eu me contorcia em saltos altos e vestidos, maquiagem, idas à manicure e comecei a fazer escova no cabelo para alisar os cachos, ocultando os rastros da real natureza, da minha selvageria.
Foram anos de total adormecimento em relação à minha essência, eu buscava me enquadrar em padrões, buscava o reconhecimento a qualquer custo e me debatia a cada teste em que não era aprovada.
Num dia, durante uma prece poderosa me vi dançando em giros ininterruptos e senti em todas as minhas células a profunda necessidade de dançar livremente. Me matriculei na semana seguinte na Faculdade Angel Viana e ali começou uma nova fase do meu videogame.
Foi um alinhamento cósmico amoroso encontrar pessoas da minha tribo em um espaço democrático onde todos os corpos são bem vindos e onde cada um expressa a sua própria dança. Eu vivia um processo de iniciação em direção à minha própria alma, em consonância com a alma do mundo. Ali comecei um processo de pesquisa cênica autoral cruzando o Teatro, a Literatura e a Dança.
Na Angel Viana me aprofundei na consciência do corpo, no corpo como instrumento, como objeto observado, observador e alteridade. Então, era isso e o agora depois de uma longa jornada é ainda mais, o corpo. E para além do físico. Mas desde já adianto: – o corpo físico me interessa! O seu corpo me interessa. Do jeito que ele é, do jeito que ele está a cada dia, porque afinal nada é, nossa natureza é a impermanência… O seu corpo me interessa. Com a sua dança, a voz esganiçada, os medos, a barriguinha, a panturrilha forte, o ombro fechado, o bumbum empinado, a voz rouca, o olhar doce, a flacidez, a dor no joelho, o suor, a risada, a tensão no pescoço, as lágrimas, o corte de cabelo que você escolheu, a respiração no peito, o grito que você não deu… Quantas memórias cabem num corpo?
A minha primeira aventura cênica na busca por saber mais sobre o corpo foi “Para onde meu corpo me leva”. Um solo de Teatro Dança dirigido pela maravilhosa Ana Vitória. Depois desse solo, eu encasquetei com o corpo que vai virando máquina, com suas senhas e números de identificação: RG 13064518-7 / CPF 03489563720 / Ag 7834 C/C 3679-0 Acesso ao Spotify: jub38terra e por aí vai… Inspirada nos humanoides de Blade Runner, criei com a Ana Vitória e com poemas do Affonso Romano de Sant’anna: “A palavra é o corpo”.
Esse solo recebeu um prêmio da Funarte e viajei por seis estados brasileiros apresentando a peça sempre seguida de uma oficina que eu chamava de “A Palavra falada e a palavra dançada” onde o público-alvo eram atores, atrizes, dançarinxs, performers e era um ato direto no sentido de eliminar bloqueios e resistências associados a automatismos diários internalizados e sobremaneira levados à cena. Laborando o movimento com o motivo do ato poético.
Em meio a essas viagens, fui convidada a facilitar um trabalho corporal com um grupo de 15 pessoas durante um ano com encontros uma vez por mês. Foi uma jornada e tanto, nos transformamos profundamente e descobrimos juntos novas abordagens para descondicionar o corpo de suas vivências já delimitadas pelo senso comum, experimentando liberdades que recuperavam a expressividade inerente ao próprio ser. Cada um ia sendo trabalhado dentro das suas potencialidades, respeitado nas suas diferenças e valorizado na sua unicidade.
Viver junto a cada corpo suas descobertas, as liberações e as manifestações que surgiam nesse campo de confiança e entrega me expandiu enormemente e continuo nesse processo com as aulas de Yoga Intuitiva.
E seguiram-se peças, performances, vídeos em que o corpo era o instrumento e pensava a si mesmo, questionando seu sentido, valor, propósito em si fundado. Fui morar em Paris para estudar e trabalhar com Mímica Corporal Dramática. Nessa época eu dançava, andava de bicicleta, eu não parava. Ballet, sapateado, dança contemporânea, alongamento, Pilates… Em um momento da trajetória deste meu corpo que agora escreve, surgiu o Yoga. Depois dessa jornada de buscas e descobertas, conheci a Siddha Yoga, um caminho espiritual que me abriu uma nova possibilidade de existência. A meditação se instalou definitivamente na minha vida e a gratidão se faz presente no meu dia a dia, porque pouco a pouco os caminhos se revelaram com mais abertura, fui desfazendo muitas resistências no meu processo evolutivo e tenho aprendido enormemente com meus mestres. Me parece fundamental ter alguém como guia no caminho.
E nesse processo de autoinvestigação, me deparei com a necessidade profunda de curar antigas feridas paternas. O desafio que me propus foi elaborar essas questões através do Teatro e criei com a Carol Chediak e a Inez Viana, o espetáculo-instalação “Quem sabe aqui”. Foi um marco fundamental de transmutação que me revelou ainda mais o poder da arte. Acredito fortemente na potência do cruzamento de linguagens artísticas, na colaboração entre artistas e na cura que realizamos ao adentrar os reinos sombrios que nos habitam para trazê-los à luz da consciência.
Yoga e arte, para mim, tem uma química inegável. A prática de posturas, a prática de mantras, a devoção e a meditação são belas manifestações da nossa capacidade artística curativa. Quando conheci Hatha Yoga, comecei praticando Vinyasa, Power Yoga… e depois encontrei o Iyengar. Ah, o Iyengar Yoga… Transformou meu corpo e minha mente como nada que eu houvesse experimentado antes. Me apaixonei e me entreguei a tal ponto que um tempinho depois me casei com meu professor de Iyengar ☺
O Antonio me aproximou do conhecimento milenar da Yoga e eu o aproximei do Teatro novamente porque ele já era ator. Juntxs, mergulhamos no universo da intimidade, das aventuras do amor e dos desafios de uma vida em comum. Em 2015 criamos juntxs o musical infantil “As Aventuras do Menino Iogue” marcando a criação da Terra Tigre Produções Artísticas. A segunda obra de arte que criamos me transformou em níveis nunca antes imaginados, a nossa filha, Nina Terra Tigre, nasceu em 2016. A maternidade me ensinae tem um papel fundamental no meu trabalho de cura através do corpo.
Mas, voltando ao Iyengar Yoga, um dia eu estava brincando, dando aula pra minha sobrinha que na época tinha 6 anos e fiz Tadasana, a postura da montanha. Ela me imitou e fez a postura com uma rigidez tão rígida que me vi no espelho e percebi que Iyengar yoga talvez reforçasse um padrão meu de alta exigência, perfeccionismo exacerbado e que eu vinha lutando pra transformar há um tempão, mas o trabalho acontecia só à nível cognitivo porque corporalmente eu fortalecia o padrão com uma prática em que eu era dura comigo mesma.
Passei a praticar com mais suavidade, algumas vezes afrouxando as articulações, outras vezes permanecendo um tempo longo em posturas de flexão pra frente, simplesmente me rendendo à ação da gravidade, absorvendo sua força indubitável para ceder as partes que resistem e nunca relaxam. Minha companheira de todas as horas é a respiração. Inspirações longas, conscientes e profundas abrindo espaços internos; exalações completas, esvaziando os pulmões e a mente, relaxando nos espaços internos que se abrem na inspiração.
Alguns dias, eu só sento em silêncio repetindo o mantra OM NAMAH SHIVAYA e outros dias simplesmente danço pelada. É meu ritual de conexão: respirar, absorver a gravidade, me entregar, suspirar sonoramente, dançar nua, me descabelar, me pentear a pele…
A partir dessas experiências com meu próprio corpo, observando cada vez mais como os movimentos evocam sentimentos, como a partir da materialidade do corpo acessamos a psique e do estudo comprometido de métodos como Feldenkrais, Iyengar yoga, The Soul Voice Method e Biopsicologia, eu desenvolvi a Yoga Intuitiva.